Sexta-feira, 31 de Outubro de 2003
CONTO PROPAROXÍTONO
Um conto vindo do Brasil, de autor desconhecido (enviado pelo Frederico Benjamim)Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador.Um substantivo masculino, com um aspecto plural, com alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. E o artigo era bem definido, feminino, singular: era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingênua, silábica, um pouco átona, até ao contrário dele: um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanáticos por leituras e filmes ortográficos.O substantivo gostou dessa situação: os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir. E sem perder essa oportunidade, começou a se insinuar, a perguntar, a conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado, e permitiu esse pequeno índice. De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro: ótimo, pensou o substantivo, mais um bom motivo para provocar alguns sinônimos.Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeça a se movimentar: só que em vez de descer, sobe e pára justamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal e entrou com ela em seu aposto. Ligou o fonema, e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, bem suave e gostosa. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram conversando, sentados num vocativo, quando ele começou outra vez a se insinuar. Ela foi deixando, ele foi usando seu forte adjunto adverbial e rapidamente chegaram a um imperativo, todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo direto. Começaram a se aproximar, ela tremendo de vocabulário, e ele sentindo seu ditongo crescente: se abraçaram, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois.Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula: ele não perdeu o ritmo e sugeriu um longo ditongo oral, e quem sabe, talvez, uma ou outra soletrada em seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, estava totalmente oxítona às vontades dele, e foram para o comum de dois gêneros. Ela totalmente voz passiva, ele voz ativa. Entre beijos, carícias, parônimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais: ficaram uns minutos nessa próclise, e ele, com todo o seu predicativo do objeto, ia tomando conta dela inteira. Estavam na posição de primeira e segunda pessoas do singular, ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.Nisso a porta abriu repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo, e entrou dando conjunções e adjetivos nos dois, que se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tônica, ou melhor, subtônica, o verbo auxiliar diminuiu seus advérbios e declarou o seu particípio na história. Os dois se olharam, e viram que isso era melhor do que uma metáfora por todo o edifício. O verbo auxiliar se entusiasmou, e mostrou o seu adjunto adnominal.Que loucura, minha gente. Aquilo não era nem comparativo: era um superlativo absoluto. Foi se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado para seus objetos. Foi chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo, propondo claramente uma mesóclise-a-trois.Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria o gerúndio do substantivo, e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino. O substantivo, vendo que poderia se transformar num artigo indefinido depois dessa, pensando em seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história: agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, jogou pela janela, e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.Agora, quem coloca ponto final sou eu. Ou melhor: coloco dois. Um, é para não perder a mania. Outro, é porque isso é um conto rápido, e não uma oração adjetiva explicativa.
Que verbo auxiliar impertinente!
Como ousa interpor-se entre um substantivo e seu artigo definido? Fez bem o substantivo em defenestrá-lo!
Afinal, onde estamos?? Numa gramática inglesa? Verbos auxiliares por aqui sabem o seu lugar!
Hehehehehehehhehehehehehehe. Grande texto, João!
Beijo da Sue
De
Fernando a 4 de Novembro de 2003 às 04:55
Não há numeral cardinal de adjectivos que substantive verbal ou graficamente os predicados de tão determinante artigo. Preposiciona-se morfológica e sintaticamente entre o adverbial e o pronomial, consoante o subordinado. Impõe-se uma interjeição: Bravo!
De
Katz a 31 de Outubro de 2003 às 20:38
Eu, que depois dos ensinamentos escolares voltei recentemente ao uso de gramáticas assombrei-me com isto... Tamanha maravilha. Tenho de mostrar isto ao Zé Luís.
De
M. a 31 de Outubro de 2003 às 16:23
Q coisa deliciosa!
De
LC a 31 de Outubro de 2003 às 13:35
Simplesmente fantástico.
Isto é o que eu chamo de criatividade absoluta.
Depois diga lá se o povo Brasileiro não sabe falar correctamente o Português. Vá diga.
Esquecemos tanta coisa, não é mesmo?
Estamos a perder tanta coisa neste país!
Até a capacidade de ser criativos com a língua que criámos.
Ora toma e embrulha.
Vou ler de novo e estarrecer-me.
Obrigada pela maravilhosa prenda que me deu hoje.
Beijos
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