Segunda-feira, 1 de Setembro de 2003
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Enquanto não tem o seu próprio blog, o meu Amigo João Tunes deu-me a honra de enviar um texto que escreveu, dizendo-me para fazer dele o que bem entendesse. É óbvio que com a qualidade a que ele habituou quem lê os seus escritos, o destino só pode ser a publicação.

Atenção ao repto final às editoras portuguesas.


JACQUES ROSSI, A PROPÓSITO DE UM ESQUELETO CAÍDO DE UM ARMÁRIO

Terminei há instantes a leitura dos três livros editados pela "le cherche midi" (colletion Documents) relacionados com a vida atribulada de Jacques Rossi e adquiridos através da "amazon.fr".

Os livros chamam-se "Le Manuel du Goulag" (1997), "Qu'elle était belle cette utopie" (2000) e "Jacques le Français" (2002) e tiveram efeitos de surpresa e de choque que permaneceram desde a primeira à última linha.

Ambas as emoções, repito de surpresa e de choque, com a leitura das (des)venturas de Jacques Rossi, colocaram-me a questão: porquê, passados vários anos desde a implosão do sistema soviético e muitos mais decorridos desde o XX Congresso do PCUS (1956) e posteriores denúncias dos crimes de Stalin? Deixarei a tentativa de lhe responder lá para o final.

Jacques Rossi é um personagem real e peculiar. Franco-polaco, filho de pais franceses, nascido em França em 1909, foi levado de tenra idade para a Polónia onde viveu com a mãe e um padrasto polaco que o perfilhou e foi educado numa casa senhorial pois o padrasto era um aristocrata latifundiário. Estudante universitário, aos 17 anos aderiu ao Partido Comunista Polaco, então na clandestinidade, acabando por ser preso pela polícia do ditador Pilsudski.

Jacques consegue fugir para a Checoslováquia e inicia uma carreira de militante comunista internacionalista. É recrutado para trabalhar nos serviços de informação do Komintern e inicia uma carreira que iria durar 10 anos de agente secreto com a tarefa de servir de correio de mensagens secretas em todo o mundo, sempre sob falsas identidades. Enquanto agente secreto, Jacques obtém vários diplomas universitários com identidades que lhe são alheias (em belas artes e civilizações orientais), torna-se poliglota (domina francês, inglês, alemão, polaco, russo, espanhol, italiano, persa e outras línguas orientais) e desempenha múltiplos papéis de disfarce. Em dado momento, apercebe-se que foi transferido (sem disso ter sido formalmente informado) dos serviços de informação do Komintern para o GRU (serviços secretos do Exército Vermelho) mas isso em nada o afecta pois a "causa" era a mesma.

Em 1937, em plena guerra civil espanhola, é enviado para a zona franquista (Valladolid) onde, sob o disfarce de diplomata nicaraguense, obtém informações sobre as actividades franquistas que a sua camarada "Julita" (de quem desconhece a identidade mas supõe tratar-se de uma austríaca devido ao sotaque com que fala o alemão) e sua "esposa" segundo o disfarce, transmite por rádio para os serviços secretos soviéticos instalados no lado republicano.

Num certo dia do final de 1937, chega uma mensagem rádio da Central ordenando a apresentação imediata de Jacques em Moscovo para desempenho de nova tarefa. "Julita" tenta dissuadir Jacques de viajar para Moscovo (em 1936 havia começado a Grande Purga) mas este, disciplinado militante revolucionário, cumpre a ordem e segue de imediato para a Capital do Comunismo.

Chegado a Moscovo, pleno das energias próprias dos 28 anos de idade e temperadas pela vida de militante clandestino desde a sua adolescência, Jacques apresenta-se no seu "serviço" disposto a cumprir nova missão e novas odisseias clandestinas. Estranha o tratamento frio dos camaradas que o atendem e mais ainda o facto de lhe dizerem que o seu chefe (um comunista polaco chamado Kraietski) já "não estava ao serviço" (saberia mais tarde que havia sido preso e fuzilado).

Decorrem os dias e as semanas, vão-lhe indicando vários sítios para habitar e continua sem resposta quanto ao seu destino. Um dia, é finalmente recebido pelo substituto de Kraietski que acusa o seu antecessor de ser um traidor e um espião e indica a Jacques que deve acompanhar um tal camarada Ivan que o levará para o local de treino da sua nova missão. A viagem de automóvel com o camarada Ivan termina dentro da prisão de Loubianka de onde transitará para a prisão de Boutirka. Jacques espera calmamente saber de que é acusado para, como julga inevitável, desfazer o "mal entendido". Para ele, o pior é então ter de partilhar as celas a abarrotar com tantos "inimigos do povo".

Ao fim de nove meses de prisão, Jacques é finalmente levado à presença de um comissário-interrogador (esta figura estava integrada na estrutura policial e não era qualquer elo do aparelho judiciário). O comissário começa por propor a Jacques que indique qual o crime que cometeu. Este diz que não cometeu qualquer crime. O comissário diz-lhe então que ele é acusado de ser um espião franco-polaco e tudo tem a ganhar em confessar as suas actividades de espionagem. Jacques reitera a sua inocência e segue-se um calvário de várias semanas em que apelos à "confissão" são entremeados com sessões de tortura de estátua e de sono (algumas durando uma semana) e de espancamentos.

Em 7 de Abril de 1939 (dezasseis meses após o início da sua prisão "preventiva"), Jacques é informado que tinha sido condenado pela OSSO (órgão não judiciário e pertencente à Segurança do Estado) - sem que estivesse presente durante a sessão de "julgamento" - a oito anos de trabalhos forçados no Goulag.

Jacques inicia a via sacra do internamento para "trabalho de reeducação" em vários campos de concentração na Sibéria e acima do Círculo Polar Ártico onde vai executando diversos trabalhos penosos sob miseráveis condições de alojamento e de alimentação e em condições climatéricas terríveis.

No final de 1945, chegou ao fim a pena que lhe havia sido aplicada pela OSSO. É-lhe então aplicada a "circular nº 224" que permite o prolongamento de encarceramento "até disposição especial".

Em 1947, é solto do campo de Norilsk mas obrigado a viver nesta cidade e apresentar-se regularmente nas instalações policiais. Jacques contacta várias Embaixadas a fim de obter visto que lhe permita sair da União Soviética. As suas cartas para as Embaixadas são interceptadas pela polícia, é preso de novo e condenado a mais vinte e cinco anos de trabalhos no Goulag como "elemento contra-revolucionário".

Feitas as contas, Jacques deveria ser libertado apenas em 1972. Ou seja, preso aos 28 anos, Jacques voltaria à "liberdade" apenas quando contasse 63 anos de idade!

Mas, em 1956 e na sequência do XX Congresso do PCUS, com 48 anos de idade, Jacques é libertado e é-lhe passado um certificado onde consta a sua reabilitação e isento de ter cometido qualquer crime ou falta para com a União Soviética. Para trás, ficavam 20 anos de reclusão por uma falsa acusação. E pela frente? A liberdade? Mais devagar, apesar do XX Congresso?
Onde viver? No estrangeiro, nem pensar. Negativo. Nas principais cidades soviéticas, isso é que era bom. Negativo. Acabou por lhe ser fixada residência em Samarkand no extremo oriental da União Soviética!

Jacques não desiste de ir para o estrangeiro. Goradas todas as tentativas para lhe ser autorizado o regresso à sua Pátria (França), Jacques explora a hipótese de obter visto para voltar à Polónia de que fugira das prisões de Pilsudski com 18 anos de idade, agora uma "democracia popular" sob controlo soviético.

Em 1961, com 52 anos de idade, Jacques consegue sair da União Soviética e ir para a Polónia. Aí vive até 1985, ano em que se fixa em França e readquire a nacionalidade francesa. Desde este ano até 2002, quando perfez a idade de 93 anos e a saúde lhe permitiu, Jacques dedicou-se a escrever as suas memórias e vários depoimentos e relatos, além de correr o mundo a dar conferências a relatar a sua experiência "goulaguiana".

Nas suas memórias e crónicas, Jacques faz relatos vivos e impressivos sobre a tragédia que representou a monstruosidade do Goulag e que destruiu a vida de milhões de seres humanos. E, no Goulag, pereceram (uns fisicamente, outros ficaram para sempre afectados pelo sofrimento psíquico devido a longos e duros anos de cativeiro) homens e mulheres pela "simples" razão de pertencerem à "classe errada" (a classe social que o sistema bolchevique queria destruir), a nacionalidades e etnias "suspeitas" de infidelidade ao sistema soviético, serem fiéis militantes comunistas apanhados na contabilidade das quotas dos "inimigos internos a abater" (em grande parte, bolcheviques da primeira hora e companheiros de Lenine), bem como os que tinham a má sina de serem casadas(os) com "inimigos do povo" ou seus filhos, aqueles que tinham dificuldades na integração na disciplina e estrutura de funcionamento totalitário do sistema até aos muitos milhares de "naives" que eram encarcerados por razões pueris ou derivadas da estupidez burocrática de polícias todos poderosos e que tentava fazer do aumento do número de prisioneiros a demonstração da sua fé comunista e evitar que lhes calhasse a vez de serem fuzilados ou penarem no Goulag. Jacques, através dos seus relatos, dá-nos conta da monstruosidade do seu sofrimento mas traz também para boca outros (muitos) prisioneiros que foi encontrando e as suas histórias cruéis. Para quem pertence a uma geração educada no escalpe do horror do Holocausto e da máquina nazi de destruição e em que o Nazi-Fascismo incarnou o Mal Absoluto (papel agora transferido para a Globalização e para a América Imperial) e que gerou o paradigma do Antifascismo segundo o qual denunciar os soviéticos (ou, hoje, denunciar a ditadura castrista ou os Partidos Comunistas ainda com expressão eleitoral) seria (é) uma forma de fazer o jogo dos fascistas, dos imperialistas e dos capitalistas, é preciso estômago para olhar o Goulag de frente com muita vergonha pelo acumular de silêncios e das vezes em que se virou o olhar e a denúncia. É que, apesar da implosão da utopia comunista, continua a ser tolerável e correcto gritar-se "Fascismo Nunca Mais!" mas ai de quem balbucie "Comunismo Nunca Mais!".

Entre os relatos e crónicas de Jacques Rossi, uma estória impressionou-me sobremaneira pelo seu absurdo cruel. Trata-se da tragédia de um trabalhador rural chamado Nikitor Prozonov que, com 30 anos de idade, farto da vida dura estupidificante no seu kolkhose, tem a má ideia de ler um anúncio no jornal (legal) "Moscov Soir" em que um empregador não identificado oferece um emprego em Moscovo indicando a morada a que os candidatos se deviam dirigir. Tendo feito o seu percurso como Pioneiro e nas Juventudes Comunistas, membro do PCUS, nunca tendo conhecido Moscovo e apenas saído da sua aldeia para os quartéis onde fizera o serviço militar, Prozonov achou chegada a hora de mudar de vida. Concedida autorização para se deslocar a Moscovo pelo Director do kolkhoze, Prozonov chegou à capital munido da folha do jornal (legal) onde se oferecia o almejado emprego e procurou a morada indicada. Localizada a rua, Prozonov não conseguiu localizar o número referenciado. Farto de procurar, o ingénuo Prozonov decidiu pedir ajuda a um polícia de giro a quem mostrou a morada no jornal (legal). O polícia leu a morada e disse-lhe polidamente que o número indicado era longe do sítio onde se encontravam mas ele iria chamar uma viatura para o levar ao local pretendido. Prozonov regozijou-se com a simpatia da polícia moscovita bem diferente dos bruta montes da milícia da sua aldeia. Chegada a viatura policial, Prozonov embarcou para uma viagem que terminou no interior da prisão de Boutyrka. Passados meses sem saber porque uma procura de emprego oferecido num jornal (legal) terminava dentro de uma prisão, Prozonov acabou por saber que era acusado de ser um espião ao serviço do Japão e, por isso, foi condenado a oito anos no Goulag. É que, apesar de nunca ter saído da sua aldeia nem ter visto um único japonês em toda a sua vida, a morada que Prozonov procurava era a da Embaixada do Japão na União Soviética que tinha decidido colocar um anúncio com oferta de emprego para os seus serviços de manutenção.

Voltando às questões que coloquei inicialmente, porquê surpresa e choque com os relatos de Jacques Rossi? Por um lado, o facto de Jacques ser muito culto, viajado e ter sido educado fora do sistema soviético, fez dele um observador atento, crítico e distanciado dos sofismas da mentalidade soviética. Outra razão poderá ser encontrada no facto de ainda existirem tantos armários fechados com esqueletos lá dentro. Armários que não é politicamente correcto abrirem-se em nome do antifascismo e do anti-imperialismo politicamente correctos. Mesmo sofrendo o risco de um desses esqueletos nos cair em cima como o daquele que se autodesignou como Manoel de Lencastre (será mesmo esqueleto ou é o pseudónimo de um Dirigente) e aparecer nas páginas de um número recente do "Avante" a defender Stalin e exigir a apresentação de provas (!) relativamente à existência do Goulag e das suas vítimas.

Finalmente, para quando a tradução para português das obras de Jacques Rossi? Teremos, em Portugal, uma Editora capaz de ser politicamente incorrecta e apresentar as provas exigidas por um pobre mas ressuscitado esqueleto que usa o pseudónimo de Manoel de Lencastre?

João Tunes


publicado por João Carvalho Fernandes às 08:14
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